Thursday, June 14, 2007

Seres A Martelo

1 - Há dias em que o sono me parece uma mão que me agarra e me puxa para uma qualquer superfície.

2 - Mas em termos de quê? Existência? Vives a dormir/dormes acordado?

1 - Temo que deixo de viver quando durmo. Como se todos os dias fossem uma nova vida. Não tomes isto como algo positivo, porque não o é. Procuro todos os dias a minha própria identidade. E todos os dias me conheço novamente.

2 - Vá lá, ainda te consegues conhecer... há quem esteja uma vida inteira para o conseguir. Quem és tu hoje?

1 - Alguém que tem fome de sair de si próprio. Droga. Psicadelismo. Noites quentes. Relento. Isso sou eu hoje.

2 - Tudo menos a realidade. Mas também hoje em dia fica cada vez fica mais difícil distinguir o real da fantasia. Nisso hoje sou diferente de ti, hoje vou andar cá por dentro a apreciar o mundo decadente que fui criando.

1 - Diverte-te. Eu vou-me divertir a negar-me o animal.

2 - Dificilmente será algo de divertido... a decadência é sempre a mesma. Se em todas as noites morresse para de manhã acordar decerto seria mais... entusiasmante... agora o animal ser negado, aí está algo que não se consegue todos os dias

1 - Por a decadência ser sempre a mesma, aprende-se a gozá-la. Acredita. O animal tem de ser negado todos os dias. Isto se te sentires na obrigação de te conseguir controlar.

2 - Este animal é então mais rebelde que os outros. Já esteve em vias de urinar nos cantos da casa, mas... é um animal mas obediente. Controlo próprio é uma praga tão grande como a besta em si.

1 - Mas pelo menos estás sempre um passo à frente de ti proprio. De qualquer das formas, esta foi a minha escolha. Não ta procuro incutir. No entanto, creio já ter sido tu. A minha escolha levou-me a um outro plano. Talvez te sentisses bem nele.

2 - Que plano era esse?

1 - Um plano de possível superioridade mas no qual o único objectivo é conheceres o teu interior e gostares dele. Um certo egocentrismo, mas "por uma boa causa". Pela tua própria... salvação? Talvez.

2 - Hum sim, já o estou a ver... (longo silêncio) Bah... acho que é mesmo de psicadelismo e drogas que precisamos.

1 - Nem mais. Para escapar momentaneamente à pressão de ser.

2 - Ou isso ou uma marretada no ser. Mas também já há aí tantos seres a martelo que o mundo não precisa de mais dois.

1 - Nem mais. (Silêncio) Bah estou cansado e dormi a noite toda. Lá está. É a dor de me procurar.

2 - Nem á noite o raio do ser deixa de ser

1 - Só no ser em si.

2 - Acho que nem aí. Talvez o seja sem o deixar aperceber.

1 - Eu deixo de ser. Cada vez mais nisso acredito.

2 - E no ser tens crença?

1 - No meu ser?

2 - Sim e no que o teu ser partilha com o ser em geral

1 - Tocaste no ponto. Em mim, teria crença não fosse eu mais um.

2 - Mas todos nós somos mais que um (ou dois). Quer dizer é por isso que eu penso que nos damos bem e nos continuamos a encontrar, tarde ou dia, noite ou madrugada, para falarmos destes assuntos com ou mais profundidade. Se fossemos só um (ou dois) dificilmente teríamos assunto para mais que um encontro.

1 - Já senti isso. Mas agora temo-me achar menos que um. Como se a minha procura me desagregasse. Como se a minha necessidade de me conhecer fosse a razão do meu auto-desconhecimento.

2 - Estou a sentir-me extremamente filosófico. Estás preparado?

1 - Como estarei preparado para algo teu se nem para o ar que acabou de sair de mim estou preparado? (silêncio) Bom, diz.

2 - Eu sei que pode soar algo familiar, mas espero que tenhas em conta que hoje em dia é muito difícil ser-se original.

1 - O que é que queres dizer com isso? Ou melhor, onde queres chegar?

2 - Então, quero dizer que o bocado de filosofia que raramente sai de mim, pode soar-te de alguma maneira menos verdadeiro por ser algo de forma... digamos conhecida.

1 - Não te entendo. Mas, antes de mais, porque te auto-rebaixas? Há quem se queixe que segundos e terceiros o fazem sofrer. Estás a cortar caminho?...

2 - Não me estou a auto-rebaixar... só estou a dizer que aquilo que vou dizer pode soar familiar. E SIM, ainda não o disse. (risos)

1 – Ah! Oferece-me um pouco de paciência, quando puderes. Prossegue, então. Eu entender-te-ei como se de Descartes se tratasse.

2 - Paciência fosse eu caro companheiro desta filosofia que é a vida. Não é bem Descartes, é mais para os lados da Grécia... mas ignora isso que não interessa nada. Preparado? (longo silêncio) Aqui vai...

"Eu penso, logo... desconheço-me"

(longo silêncio)


- Sérgio Ribeiro e Fernando Ferreira -